Relato de circense: Criação do solo Passages
Quando eu apresento…
Em geral sinto muito frio ou muito calor.
Sinto o espaço limitado.
Sinto o suor nas minhas mãos e me concentro nele. Porque se o suor é muito, escorrego e arrisco me machucar. Se é pouco, a mão seca não me ajuda, lhe falta aderência, também escorrega.
Sinto os meus pés na plataforma de madeira que às vezes treme. O apoio do meu ombro na parede de plexiglass. Apoio que, quando presto atenção, é ligeiramente doloroso e que com frequência resulta em hematomas. Mas em geral eu não sinto nada ali porque minha atenção está em outro lugar: no suor das minhas mãos e no esforço de não pensar muito no suor das minhas mãos. Pois isso acaba cortando minha relação com o público, busco olhar as pessoas nos olhos, abrir a máscara, permitir que elas vejam meu rosto e minhas emoções, não me virar completamente para dentro de mim, não me fechar em uma bolha de concentração interna, não buscar o movimento perfeito, buscar a conexão com o público, e comigo mesma, buscar viver e compartilhar emoções. E ao mesmo tempo, não esquecer completamente o suor das mãos, sobretudo gerenciar o suor das mãos.
Entrego-me à coreografia que conheço, que compus minuciosamente, que percorri várias vezes. Busco vivê-la como se fosse a primeira vez. E consigo. Não preciso de nenhum esforço psicológico nem tenho habilidades de interpretação teatral para que as emoções estejam ali. A situação é extrema. É real. Por mais que a repita e que possa me habituar, por mais que haja naturalidade nos meus movimentos e o público já não se dê conta do risco, ela segue sendo extracotidiana, arriscada… se eu cair ali dentro não há uma saída e não há nem como desmontar o aparelho com uma pessoa dentro dele, se esse for o caso só o corpo de bombeiros pode me recuperar…
Não preciso de nenhum esforço psicológico nem tenho habilidades de interpretação teatral para que as emoções estejam ali também porque posso contar com o prazer do ar fresco contra a minha pele, quando acabo saindo da estrutura no momento clímax deste elaborado circense. Ele é inescapável, e é sempre arrebatador : um alívio, um momento especial, é uma sensação forte que me invade, é como se fosse a primeira ou última vez que sinto o ar fresco contra a minha pele.
E depois, finalmente, é o momento de um encontro direto com o público. Olho no olho. Observo as pessoas em torno, de cima, tomo o tempo de olhar, elas me olham. Em geral
sorriem e isso me dá vontade de sorrir. Algumas crianças às vezes gritam! Já ouvi jette toi! em Marselha, buttati! em Milão, salta! em Barcelona. É curioso que a mesma ordem aparece na boca destas crianças de nacionalidade diferente. Tenho vontade de me jogar. Mas estou em pé sobre uma estrutura de quase quatro metros e meio de altura e minha constituição é frágil. Sou contorcionista, minhas articulações não aguentam muito impacto, mas naquele momento ali, parece possível, aceitável, necessário. Todos querem isso, me pedem isso, acham que para mim seria natural, nem notam que a altura é demasiada. E alí preciso me controlar. É pensando neste momento que abri o texto que venho tecendo ao longo desta pesquisa, pois concordo com o romancista Milan Kundera, vertigem “É a voz do vazio debaixo de nós, que nos atrai e nos envolve” (2008, p.32) Neste momento, me sinto confrontando “o desejo da queda do qual nos defendemos aterrorizados” (idem).
O meu fascínio pelas acrobacias começou cedo. Com seis anos de idade, por volta de 1996, vi pela primeira vez um capoeirista que fazia um salto mortal em uma roda. O desejo de experimentar o corpo livre no espaço foi tão forte que, apesar dos meus medos e dúvidas, decidi tentar imitá-la. Subi em um banco da praça, esperei o momento em que nenhum adulto me olhasse e me lancei para trás. Caí de cabeça, bati a testa primeiro no banco, e depois no chão, ambos de concreto. Talvez este evento seja a causa da epilepsia benigna da infância que tive que me acometeu entre os sete e dez anos de idade. Certamente é a memória mais antiga que tenho relacionada à minha vontade de praticar acrobacias.
Vários anos depois, em 2015, eu estava em formação na Escola Nacional de Circo do Rio de Janeiro. Foi o primeiro dia que balancei em um trapézio de vôos. Meu professor, o cubano Alexis Reyes, talvez com certo sadismo, não me permitiu colocar uma lonja1, disse que eu tinha capacidade de balançar e soltar a barra no momento correto para poder aterrissar de costas com segurança na rede de proteção. Eu senti medo enquanto subia a escada e esperava lá em cima. Era tão alto, a cada degrau o calor aumentava. A lona, instalada na praça da bandeira, criava uma espécie de estufa que aumentava ainda mais o exagerado calor do Rio de Janeiro naquele mês de março. Tudo ali era de metal e o metal queimava meus pés e mãos. O ar era denso, abafado e quente. Lá em cima, eu quis desistir, mas sentia ainda mais medo de descer pelo mesmo caminho que tinha subido. Era muito alto e não havia apoios, eu buscava um parapeito onde me segurar, algo que garantisse minha segurança. Não havia. Era melhor não tardar e enfrentar o trapézio. Eu me surpreendi ao constatar que tremia. Quando
1 Nome que se usa no circo para uma cintura de segurança utilizada para o aprendizado de acrobacias.
chegou minha vez, lancei-me em um balanço que exigia toda força dos meus músculos, ainda despreparados para aquela atividade.
As minhas mãos apertavam a barra do trapézio com uma força excessiva que me dava cãibras, fruto da euforia e do pânico, enquanto sentia o vento invadindo minha boca e movendo minha bochecha, como um cachorro na janela de um carro em alta velocidade. Não consegui soltar a barra na primeira tentativa e, quando finalmente o fiz, tive uma sensação exageradamente forte que meu estômago estava sendo arrancado do meu ventre e fosse ficando para trás em relação ao corpo que estava caindo de costas no vazio, uma sensação aterrorizante vivida antes apenas em pesadelos. Era curioso porém que eu já a conhecia, ou melhor, reconhecia, como se vivesse uma memória ancestral. Finalmente aterrizei, torta e desajeitada, na rede de segurança.
Euforia, liberdade, gratidão. Durante este momento eu não era Alice. Eu não sabia quem era, mas com certeza eu era, existia, sentia uma total presença. Sim, estava viva, tão viva, tão eufórica, tão agradecida, tão sorridente. Sobrevivi. E, enfim, vivi!
Isto durou o breve momento entre a minha aterrissagem e a chegada de um arco de saliva no meu rosto. Eu tinha inadvertidamente babado alguns segundos antes, quando ainda estava no ar. A saliva aterrissou sobre minha fronte, me fazendo ficar embaraçada. Ante meus colegas que riam e meu professor que desaprovava, percebi que era difícil caminhar e descer da rede, que ela era mais alta e intimidadora do que eu imaginava, e além disso era instável e áspera, o seu contato com a pele doía. Escapando desajeitadamente dali, optei por arranhar meus antebraços, pernas e joelhos para liberar-me o mais rápido possível da situação. Tinha cãibras nas mãos e nos antebraços por apertar exageradamente a barra e dor no corpo, sobretudo na coluna, por causa da queda desajeitada. Essas dores me acompanharam por alguns dias.
A euforia também.
Terminei a Escola de Circo em 2017. Desde então viajei muito, mudei de país algumas vezes. Trabalho como intérprete, e também me lanço em fazer minhas próprias criações. A primeira delas apelidei de Passages e é um solo que comecei em 2019 e que sigo apresentando.
A história deste projeto foi inusitada. Entre 2017 e 2018 participei da criação de um espetáculo do diretor e artista de circo Roberto Magro, no qual ele me pediu pesquisar com uma corda dentro de uma caixa de acrílico suspendida a quatro metros do solo. Acompanhada por ele, acabei por abandonar a corda e descobrir inúmeras possibilidades de movimentação
dentro deste novo aparelho circense que estávamos inventando. Este processo foi permeado por algumas vertigens, não é simples inventar uma disciplina, arriscar movimentos que nunca vimos alguém executar antes, que não temos certeza que são possíveis.
Após esta experiência, o desejo de continuar trabalhando com este aparelho me levou a construir uma estrutura para mim, um pouco mais estreita que a primeira e adaptada para ser instalada no chão. Eu tinha um pouco de angústia de estar suspendida a quatro metros de altura entre estas paredes de acrílico, com uma abertura embaixo pela qual eu entrava e saia. No chão o objeto mudava, a entrada e a saída seria por cima. A oportunidade para desenvolver este projeto apareceu em 2019. Ele foi selecionado pela chamada Creacio i Museos da cidade de Barcelona, que dava recursos para artistas emergentes da cidade. Desenhei o novo objeto, ele foi construído, e comecei a criar o meu primeiro solo, que veio a se chamar Passages.
Era 5 de junho de 2019 , segundo dia de trabalho. Eu estava ansiosa porque me sentia muito privilegiada por ter tanto dinheiro para fazer uma criação, me sentia na obrigação que ela fosse excelente e me colocava muita pressão. Comecei a trabalhar sem que a base da cenografia estivesse inteiramente pronta. Faltava ainda a base de madeira que me protege de cair embaixo das patas do aparelho.
Eu não tinha uma equipe, estava sozinha na sala. Tinha muita euforia e muitas dúvidas. E culpava muito porque tinha errado no desenho que enviei ao cenotécnico e isso interferiu no resultado final.
Eu queria fazer contorção em um espaço limitado. Então medi meu corpo de vários modos para entender o mínimo de espaço que eu precisava dentro da cenografia. Concluí que eram sessenta e oito centímetros Resolvi que eu ia arriscar e fazer o objeto ainda mais estreito, para me colocar o desafio de encontrar movimentos extremos. Indiquei a medida de sessenta e seis centímetros no desenho que enviei ao cenotécnico.
Ele pensou que eu me referia ao lado de fora – como meu desenho inexperiente dava a entender – mas essa era a medida que pretendia para o lado de dentro. Então uma vez pronta, como as paredes tinham cerca de quatro centímetros de espessura, o resultado foi um espaço de cerca sessenta e dois centímetros dentro da estrutura. Era muito difícil encontrar movimentos nestas condições, eu estava ansiosa.
Também estava ansiosa porque não tinha onde colocar este aparelho. Não tinha um caminhão para transportá-lo. Eu tinha feito uma cenografia que media quatro metros de altura e pesava uns duzentos quilos e não sabia como gerenciá-la. Estava também ansiosa porque não tinha casa fixa e tinha malas e documentos espalhados pela casas de amigos e família em
seis cidades diferentes, entre quatro países e dois continentes. E parte desses amigos era tão instável como eu e mudava sempre de endereço, tinha medo que eles abandonassem meus pertences em qualquer lado. Tinha concluído que era melhor esparramar minhas coisas do que tentar guardar tudo num bauzinho. Elas teriam mais chance de voltar assim. Fazendo confiança nas pessoas com quem cruzo e no destino.
Eu provavelmente estava remoendo um destes temas quando caí justamente com o braço na única parte da cenografia que ainda não estava pronta, no buraco que não estava tapado. Como resultado meu braço quebrou. Senti que logo ia acordar, na verdade estava desmaiando, levantei. Como sair da caixa? Não sabia. E até hoje não sei. Eu estava sozinha e com os dois braços ocupados,um segurando o outro que estava todo mole e deformado, parecia a letra ‘S’. Como sair da sala, abrir a pesada porta de incêndio? Não lembro. Mas consegui. Quando as pessoas me viram na sala de treinamento eu me dei o direito de desmaiar e no movimento de me sentar no chão senti meu braço fazendo ‘clic’: ele tinha entrado no lugar. Esperei o pronto socorro, eles chegaram dizendo: ‘Nosotros conocemos! Conocemos el circo. Conocemos el trapezio, el trampolin… puedes explicar lo que paso que entenderemos’. Eles não entenderam. E ninguém conseguia explicar exatamente para eles o que tinha acontecido. Meu braço aparentava estar no lugar certo e os médicos então achavam que minha apreensão era frescura e que meu osso nunca tinha saído de lá. Havia um vídeo da queda pois eu estava me filmando no momento que cai, pois assistir depois a filmagem ajuda a pesquisar novos movimentos. Encontramos o vídeo. Eles assistiram. E em seguida queriam olhar não apenas meu braço, também minhas costas e minha cabeça, assustados com o modo como cai.
Eu não tinha muito dinheiro para criação apesar de me sentir riquíssima por poder pagar a cenografia inteira, que era cara! Por isso não me «declarava» enquanto trabalhadora e nem me pagava a cada dia de trabalho: meu acidente então não caracterizou um acidente de trabalho. Nessa época tive a sorte de que eu era inscrita no seguro de saúde da instituição que me recebia em residência. Não tinha nenhuma proteção trabalhista, mas tive um seguro de saúde privado. O problema era que eu não tinha previsto estar em Barcelona no mês seguinte: era mais caro pagar um mês a mais vivendo lá para poder desfrutar dos cuidados provados ou ir para a Itália onde tinha hospedagem e pagar um fisioterapeuta?
A criação da caixa de acrílico me dava muito medo. Me parecia uma ideia completamente lunática. Eu explicava meu projeto para amigos e família eles me afirmaram que não fazia o menor sentido me lançar na empreitada de inventar este inusitado e autêntico aparelho de circo. Eu não tinha onde estocá-la, não tinha como transportá-la. Se tivesse o
dinheiro e os documentos para comprar um meio de transporte adaptado para esta cenografia, o que eu não tinha, tampouco seria suficiente Eu não tinha onde estacionar um furgão, não tinha os documentos necessários para comprá-lo e tampouco tinha a capacidade de dirigir.
Essa época eu pensei muito sobre como é difícil ser livre em situação de instabilidade. Que fácil era quando eu era criança e me machucava! Tinha uma casa confortável, meus familiares me levavam no doutor, me ajudavam a tomar banho… cuidavam de mim. O contraste entre um passado no qual tive tanto apoio e um presente precário me gerava uma sensação de abandono e solidão que fez com que eu me sentisse ainda mais vulnerável por estar tão frágil e sozinha em um país estranjeiro.
Meu braço se curou lentamente, e contrariamente às perspectivas dos médicos e fisioterapeutas que me acompanharam, em menos de seis meses pude voltar a fazer todas as acrobacias que era capaz anteriormente. No entanto, defender o projeto deste espetáculo seguiu sendo uma empreitada permeada de vertigens pessoais. Como já comentei, eu não tinha onde guardar a estrutura que é enorme. Não tinha tampouco um meio para transportá-la. Minha carteira de motorista, brasileira, não servia para comprar um caminhão na Europa. E mesmo se servisse eu não tinha dinheiro. E mesmo se tivesse dinheiro, tinha medo de comprar um caminhão sozinha. Comprei um trailer dos anos oitenta, de segunda mão, em péssimo estado. Assim podia colocar o objeto dentro, passando pela janela, quebrando um pouco o interior do trailer… Comprei também o problema de encontrar onde deixar esse trailer, já que eu não tinha um jardim, e o medo que ele se desmonte na estrada quando tive que transportá-lo de um lugar para outro.
Inscrevi-me em um programa de inserção profissional em Toulouse ESACTO’Lido em 2019. Terminei o curso frustrada : meu aparelho era muito estranho, as pessoas se perguntavam se isso era circo mesmo, meus colegas viajavam com todo equipamento de seus espetáculos em uma mala, podiam se mover de trem e se instalavam em quinze minutos. Eu precisava de alguém que me ajudasse na instalação, não tinha como pagar uma pessoa fixa, toda a turma tinha que me ajudar na montagem. Eu ainda não tinha como faturar o espetáculo, não sabia muito bem como circular. era difícil conhecer as pessoas, entrar em uma rede. Meu nível de francês era insuficiente. Meu salário também. Decidi voltar para o Brasil.
Foi então que me inscrevi na seleção do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da UFRJ. Nesta época eu sentia vertigem de tudo estar acontecendo rápido demais, mudando muitas vezes de espaço e de projeto em um período curto de tempo. Viajava muito, às vezes já não me lembrava de que cidade tinha acordado de manhã. No início de março fui
para Barcelona, ensaiar o espetáculo Silenzio que apresentaria em Bruxelas no festival UP dias 19 e 20 do mesmo mês. Na semana seguinte voei até o Rio de Janeiro, fazendo conexões em Nova York e Atlanta. Viajei quando a crise do coronavírus já era grave na China e na Itália. Tenho dupla cidadania (brasileira e italiana) e como meu voo passava pelos Estados Unidos precisava viajar com meu passaporte italiano. A comissária me perguntou várias vezes para ter certeza que não passei pela Itália nos últimos meses, o que devido às regras em vigor contra a recém iniciada epidemia de covid-19 me impediria de poder pegar o voo. Em Nova York, o funcionário da alfândega achou minha história pessoal um pouco estranha e suspeita e, mesmo eu estando apenas de passagem pelo território americano, me mandou responder um interrogatório na polícia : So, you’re italian, you live in France, you work in Spain and you’re going to Brazil to see your family? And are you sure you haven’t been in Italy nor in China the last 3 months? Quase perco minha conexão para o Brasil.
Eu tinha mentido para a policial da alfândega dizendo que viajava para ver minha família. Tinha feito isso para tornar a minha história mais convincente: passei apenas três dias no Rio de Janeiro, quando fiz a última etapa do processo seletivo de doutorado do PPGAC – UFRJ. Não cheguei a ver meus pais, que moram em Minas Gerais, mas não me inquietei pois voltaria em breve para o Brasil. Não tive nem tempo de desfazer as malas e viajei de novo para fechar meus últimos compromissos na Europa e devolver a casa que estava alugando até então nos poucos dias que tinha antes de tomar um voo para Bruxelas onde apresentaria Silenzio, da companhia Roberto Magro no festival UP2 e em seguida voltaria para o Brasil.
Esta peregrinação vertiginosa foi interrompida em ato: como se tivesse que frear no meio de um salto, festival anulado, trem anulado, fronteiras internacionais fechadas. O confinamento imposto pelo então atual presidente francês Emmanuel Macron no dia 17 de março em combate à proliferação do coronavírus me levou a permanecer em Nexon muito mais tempo do que tinha planejado. A vertigem do movimento acelerado foi substituída pela vertigem da imobilidade; na quarentena coronavírus fui obrigada a permanecer em um mesmo espaço durante um período longo de tempo. Mover lento. Esperar. Atuar a partir de uma lógica de cuidado, de coletividade. Abandonar o excesso de exposição, de sociabilidade, de auto-exibição, de velocidade, o excesso de projetos e de produtividade.
Foi neste momento de suspensão e isolamento que, junto a Alessandra Vannucci, minha orientadora do PPGAC, decidimos começar a pesquisa, antes mesmo que eu pudesse começar o doutorado oficialmente, o que foi atrasado por seis meses devido à situação
2 https://upfestival.be/en/show/silenzio/
sanitária. Alessandra me instigou a trabalhar e como o projeto era buscar a vertigem a partir de um trabalho físico nossa primeira reação foi recuperar meu aparelho. No início não notei o quanto ele podia ser alegórico da situação que estamos vivendo. Eu sentia apenas que ele era representativo da minha vertigem naquele momento, de me sentir isolada em um espaço completamente à parte, um outro continente. Isolada também porque não podíamos ter contato com outras pessoas. Claustrofóbica porque não era permitido sair de casa, e onde eu estava a polícia francesa assegurava de carro, cavalo e helicóptero que as regras de confinamento fossem cumpridas. Além disso, eu me sentia fora da norma. Porque não tinha casa, passei todo confinamento vivendo em uma caravana. Não sabia se isso era legal ou não, por isso a polícia me intimidava. Me sentia um outsider.
Foi neste contexto que me lancei na escritura de Passages, instalando meu aparelho em uma antiga cavalariça fria e úmida que o polo de circo de Nexon utilizava para depositar material. A partir das indicações de Alessandra Vannucci, trabalhei por vezes sozinha, por vezes acompanhada de sua presença online. Ela me dava estímulos, eu lhe devolvia gravações de trabalho, entramos em diálogo. O primeiro fruto deste trabalho foi Confins, vídeo que ganhou o Prêmio Arte como Respiro do Itaú Cultural em 2020 e em 2021 foi transmitido nos festival Sesc Circos de São Paulo, no Festival Mundial de Circo de Belo Horizonte, no festival online Somos Circo.
E continuei ensaiando e pesquisando. Depois de algumas semanas convidei algumas pessoas para vir assistir. Um pequeno grupo pois neste momento era proibido aglomerar-se. Elas gostaram. Como resultado, o polo de circo me programou no festival que eles organizam e também em uma pequena turnê na região. O espetáculo era surpreendentemente compatível com a extensa lista de medidas tomadas para conter a epidemia de covid 19. As regulamentações que foram estabelecidas no território francês para assegurar a distância social representaram uma grande crise para o setor das artes cênicas, impondo por vezes o uso de máscara e uma distância mínima também para os artistas em cena, para além da limitação do número de pessoas na sala. Isso impedia a apresentação de uma série de números circenses que são baseados em tocar, carregar, sustentar o parceiro de cena. No meu caso há uma parede de plexiglass que me isola do público, eu limpo essa parede em continuação com álcool para não escorregar e o espetáculo é pensado para espaços ao ar livre, apesar de adaptável para qualquer lugar que apresente altura suficiente para a instalação da estrutura. Essas características me possibilitaram continuar trabalhando com o espetáculo apesar das limitações sanitárias.
Após esta turnê regional, fui progressivamente sendo convidada a outros eventos,
cada vez em lugares mais distantes e variados e, pouco a pouco, o espetáculo foi amadurecendo e se aproximando do que veio a ser sua forma final.
Quando termino a apresentação e saio do espaço cênico tenho a sensação de que minha presença carrega algo de sobrenatural. As pessoas me observam com curiosidade, as crianças ficam intimidadas, surpreendidas como se tivessem em frente a um ser fantástico. Isso me diverte! No final do espetáculo sempre converso com as pessoas.
Ao longo dos últimos dois anos o público me compartilhou diferentes leituras me perguntando sempre se entenderam corretamente e querendo averiguar qual era a minha intenção, o que eu estava buscando compartilhar. É a história de alguém que luta contra seus problemas de saúde mental? Ou que sofre de solidão extrema? Que tem vontade de liberdade mas medo de sair do seu espaço de conforto? Que está em tensão entre conforto que é uma prisão e a liberdade que dá vertigem? Por que ela não ousa saltar? Por que ela volta para dentro do aparelho? É uma história de reencarnação? Qual é a alegoria de um nascimento? Ou um simples delírio sonhador de alguém que compartilha o desejo de uma ascensão ao céu? Tem um fundo político? Feminista? Estaria criticando a falta de espaço na sociedade para a mulher? O excesso de exposição e a visão que temos sobre o corpo feminino? Há referências à situação sanitária relacionada ao covid-19, ao confinamento? Ou aos exilados políticos? Aos frágeis e inadaptados, aos que foram encarcerados em hospitais, hospícios e casas de correção? Ou ao desastre ecológico que se anuncia iminente? Seria a imagem de um rio, cujas margens já são incapazes de conter?
Ouvindo essas interpretações, fica evidente como o lugar em que o espetáculo é apresentado contamina a leitura do público. Praia, igreja, cemitério, hospital, jardim, esplanada, alto de uma montanha, rua movimentada, parque natural, museu da Escola Superior de Belas Artes, instituição de ensino médio agrícola, teatro, museu de História Natural. Estes ambientes, combinados com a transparência da cenografia, mudam o universo e o sentido da imagem de uma pessoa que busca escapar de seu pequeno espaço.
Por: Alice Rende